JOSÉ JORGE – PARA SEMPRE ESCOTEIRO

22 de fevereiro de 2021

Há mais de um século, jovens de incontáveis cidades pelo mundo são incentivados a assumir o protagonismo do seu próprio desenvolvimento e a vivenciar as boas práticas da vida ao ar livre. Entre outras habilidades, aprendem a viver em equipe e a praticar ações humanitárias. Essas vocações estão na essência do Movimento Escoteiro, que foi concebido para ensinar valores como lealdade, confiabilidade e responsabilidade aos seus membros juvenis.

Os relatos contidos aqui tiveram início em 1976, num sábado de atividades do 2º Grupo Escoteiro do Mar Marcílio Dias, sediado no Grupamento de Fuzileiros Navais de Salvador, quando um certo garoto morador de Massaranduba, bairro da cidade baixa da capital baiana, faz sua Promessa Escoteira, aos 13 anos de idade.

Um jovem promissor

José Jorge Alves de Souza nasceu em Salvador, em 18/06/1963, e aquela investidura revelaria um jovem promissor, cujas tardes de sábado tornaram-se um compromisso cumprido com assiduidade, desde sua fase adolescente até adulto jovem, fosse como escoteiro, sênior, pioneiro ou chefe de tropa.

Combinando sua personalidade pacífica com o dinamismo de um universo interior criativo, José Jorge logo mostrou-se um jovem empreendedor e comprometido com o projeto educacional do Movimento Escoteiro. Tomava as iniciativas na realização das tarefas de sua patrulha e foi se tornando uma figura marcante. Em sua vida escoteira, vestiu unicamente o uniforme dos escoteiros do mar do 2º GEMAR Marcílio Dias. Foi ali que viveu cada etapa de sua condição de jovem, permitindo-se moldar segundo a Lei e a Promessa Escoteira, longe de qualquer negatividade.

E o Grupo estava pronto para auxiliar e entregar à sociedade alguém que se dispôs a ser melhor, dia após dia. Na medida em que sua idade e sua progressão avançavam, ele ia se integrando a cada nova seção, conforme a faixa etária correspondente. Assim, fez sua passagem da tropa escoteira para a tropa sênior e, em seguida, passou a integrar o clã pioneiro distrital Porayama, coordenado pela mestre-pioneira Cristina Rosário, uma vez que parte dos grupos não mantinham essa seção. Já nessa fase, tornou-se assistente da tropa sênior.

Movido por sua dedicação, motivação e engajamento, José Jorge conciliava sua opção de viver o escotismo com a grandeza de servir ao próximo, dentro ou fora do Movimento. Assim, o jovem pioneiro passou a atuar na loja da Região Escoteira da Bahia, onde dividia as tarefas com Vitomilson Oliveira, pioneiro integrante do 33º BA GE Cardeal da Silva, que atesta algumas características de José Jorge: “responsável, educado e determinado”. Na área de Enfermagem, trabalhava no Hospital Santo Antônio, como voluntário das Obras Sociais Irmã Dulce. Foi naquela unidade hospitalar que, após sentir-se mal em algumas ocasiões, realizou exames médicos e os resultados mudariam definitivamente o rumo de sua existência.

JOSÉ JORGE - PARA SEMPRE ESCOTEIRO

A luta contra uma grave doença

A enfermidade detectada em células localizadas se mostrou muito agressiva e, em pouco tempo, se agravara rapidamente. Os dias agora eram episódios marcados pelos espasmos que acompanhavam as dores lancinantes que lhe acometiam. Durante a semana, José Jorge atravessava as crises características da enfermidade e, na tentativa de amenizar a dor, recorria ao uso da morfina em doses cada vez maiores. Tal aflição um dia lhe fizeram não querer viver, mas sabia que devia continuar. Um quadro clínico tão desolador assim seria o limite para a maioria das pessoas, mas o chefe da tropa sênior nem cogitava se ausentar do Marcílio Dias, e todos os sábados se fazia presente para as atividades. Era alguém que se dedicava a seus planos e os levaria até o fim.

O sentimento de pertencimento que ligava José Jorge ao Grupo Marcílio Dias se harmonizava com seu espírito cuidador e dessa familiaridade floresceu uma relação de reciprocidade.  Ele queria estar ali, entre os seus iguais, para cumprir o que considerava ser sua missão. Em troca, sentia que o escotismo proporcionava a energia que lhe acalentava a alma e dava sentido à vida.

A solidariedade de amigos

Em função do crescente agravamento de sua condição clínica, foi submetido a uma cirurgia que o deixou ainda mais debilitado. E outra vez aquele jovem intrépido, resiliente e sem vaidades teimava em melhorar o mundo, mas agora teria de continuar essa tarefa sobre uma cadeira de rodas. E assim ele continuou chefiando a tropa sênior do Marcílio Dias, contando com o auxílio do sr. Araújo¹, pai de um dos jovens seniores, e do escotista Emanoel Mattos, o chefe Manneca, para chegar até o grupo.

Aos sábados esse pai, que levava regularmente o filho para a atividade escoteira, dirigia seu táxi desde a Av. Vasco da Gama, onde morava, até a sede do 2º Grupo Escoteiro do Mar Marcílio Dias, na Avenida da França, passando antes pelos bairros Caminho de Areia e Massaranduba. Seguindo esse trajeto, ele encontrava o chefe Manneca, que coordenava a tropa escoteira e, em seguida, buscavam José Jorge com sua cadeira de rodas, para coordenar as atividades da tropa sênior. No final da tarde ou início da noite, o sr. Araújo fazia o trajeto de volta e os deixava em casa. Para os jovens do Marcílio Dias, que acompanhavam tamanha dedicação, José Jorge era um chefe-herói que comovia e, principalmente, inspirava a todos. Para pais e voluntários, que compreendiam sua entrega, aquela luta dramática simbolizava um ato de amor pelo próximo e pela causa escoteira, mas que também ensinava que a solidariedade é um valor humano a ser cultivado em qualquer circunstância. Por certo, aquela determinação até despertava a esperança de que a doença poderia ser superada e José Jorge sairia restabelecido, vitorioso, mas o tempo não parava a metástase que corroía o garbo da juventude, e o que se via era um bravo escoteiro que definhava a cada dia.

Canção da despedida – O fim da luta

Num certo sábado, o sr. Araújo, o pai solidário, não precisou ir à casa de José Jorge. Naquele sábado não haveria o trajeto até o Grupo Marcílio Dias, como o faziam regularmente. Familiares contactaram o chefe Manneca para informar-lhe que a luta de José Jorge tinha chegado ao fim. Seu descanso final ocorreu no dia anterior, em 20/11/1987. Naquela tarde de sábado, jovens e adultos, representantes regionais e de grupos diversos foram ao Cemitério Campo Santo dar adeus àquele que deixou lições de generosidade e determinação, tendo vivido por apenas 24 anos.

O caixão que lhe abrigou em seu derradeiro acampamento foi enterrado na ‘área de campo’, como ele queria, ao som de muitas vozes cantando a ‘Canção da Despedida’, como fazem os escoteiros, sempre que se encerra um ciclo importante. Naquela despedida dolorosa e comovente, a palma escoteira foi seguida pelo grito de guerra do Marcilio Dias (Terra, mar, glória Marcílio Dias! Bravo, bravo, bravo, bravíssimo!) e, num gesto espontâneo, os jovens da tropa sênior, que o chefe coordenara, aproximaram-se e depositaram os bastões-totens na cova, que foram enterrados juntos com as flores.

O vazio deixado por José Jorge

José Jorge marcou a vida de pessoas de diferentes gerações em seu grupo escoteiro e fora dele. A forma diligente como se portava diante de jovens ou adultos era um reflexo de seu extraordinário caráter. Seu comprometimento traduzia o ideal escoteiro de contribuir para a construção de um mundo fraterno e mais justo.

O profundo pesar pela morte do jovem chefe mergulhou o Grupo em um difícil período de luto e muitos jovens da tropa sênior deixaram de comparecer às atividades. “Depois dessa morte de José Jorge, a gente perdeu cerca de 90% de jovens da tropa sênior. A tropa esvaziou!”, disse o chefe Manneca, que à época era chefe da tropa escoteira. Embora todo o Grupo tenha sido atingido pela evasão, a proporção de baixas foi especialmente maior na tropa sênior. Nos dias seguintes, alguns pais relataram que seus filhos, impactados por aquela ausência e tomados pelo sentimento de perda, chegavam a sonhar com o chefe que fora tão marcante em suas vidas.

O ano de 1988 chegou como um amanhecer de incertezas para o Marcílio Dias, fazendo com que a equipe de dirigentes e escotistas decidisse concentrar esforços na reabilitação do Grupo. A realidade era dolorosa, mas a ferida precisava ser fechada. Em alguns meses os resultados pelo empenho foram surgindo e os jovens começaram a retornar às atividades na tropa sênior que, foi gradualmente recomposta. As duas tropas escoteiras existentes – Marcílio Dias e Humaitá – também colhiam os frutos desse trabalho e se revigoravam com o retorno de seus escoteiros e o ingresso de novos integrantes.

Homenagem em seu lar afetivo

Ainda no ano de 1988, o chefe Manneca assumiu a tropa sênior que, a pedido seu, passou a se chamar Tropa Sênior José Jorge, sugestão aprovada por unanimidade na Assembléia de Grupo. Uma homenagem que todos consideraram justa, em memória de alguém que tanto se dedicou ao 2º Grupo Escoteiro do Mar Marcílio Dias e ao escotismo, até o último dia de sua vida.

Por fim, José Jorge continua onde mais gostava de estar: junto aos irmãos de lenço, no meio em que se sentia acolhido por completo, contribuindo para mudar o mundo inteiro ou, ao menos, o mundo daqueles que escolham protagonizar sua própria história. E sua grandeza, pelo exemplo, responde à pergunta que fascina os nossos jovens sobre o que é o escotismo.

MEMORIAL ESCOTEIRO DA BAHIA
Texto por Jonaldo Batista

Colaboraram os escoteiros:
– Emanoel Roque Bastos Mattos (Manneca) – 2ºBA GEMAR Marcílio Dias
– Vitomilson Oliveira da Silva (Vítor) – 33ºBA GE Cardeal da Silva
– Antônio Roque Araújo Rocha – Região Escoteira de Sergipe

– (¹) O sr. Araújo, citado nesta matéria, pai de um jovem sênior do Grupo Marcílio Dias à época, que transportava José Jorge solidariamente, infelizmente faleceu no último dia 17/02/2021, por complicações da Covid-19, aos 81 anos de idade.

– Imagem 1 – José Jorge e a chf Rosa Therezinha de Oliveira Issa, presidente da Comissão Executiva do 2º Grupo Escoteiro do Mar Marcílio Dias.
– Imagem 2 – José Jorge e Reinaldo Mattos
– Imagem 3 –  O jovem José Jorge, como monitor sênior
– Imagem 4 – José Jorge com seus padrinhos de casamento, Emanoel Bonfim Mattos e Celina Bastos Mattos

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